Project Description
O que significa para mim fotografar? Duas décadas depois de ter começado a ilustrar os meus textos com imagens dos lugares que esses textos descreviam, ainda hoje sou obrigado a combater a relutância e a inércia mental de pegar na máquina, sair para a rua e ir tirar fotografias. Acima de tudo, continuo ainda hoje a procurar uma identidade própria, uma perspectiva aparte, um olhar de fotógrafo que justifique as imagens por si só e que fuja desse beco sem saída que é um portfolio tomado de empréstimo à escrita. Ainda hoje procuro como contrariar o vício fácil de regressar com imagens que são apenas um prolongamento do que escrevi.
(…) Agora, no quarto da pensão de Dali congratulava-me pelo trabalho da manhã. As imagens estavam boas. Não era exactamente mérito meu, mas sim da luz. Todas essas imagens tinham uma qualidade em comum: estavam iluminadas. Tinham ainda uma outra qualidade em comum: eram autónomas. Não dependiam do meu juízo de escritor viajante. Revelavam apenas que alguma coisa chamara a atenção do autor daquelas imagens quando as captara. Por isso as captara. Essa coisa era a capacidade da luz criar beleza no mundo.
Talvez pela altitude ou pelo excesso de chá verde, sentia uma acutilância na análise da minha relação com a fotografia que me permitia clarificar o que me interessava como objecto fotográfico, e qual a direcção natural do meu olhar. Por outras palavras, percebia finalmente o que me interessava fotografar. As minhas fotografias procuravam armazenar momentos cuja qualidade visual fosse tão metafísica que permitisse mantê-los congelados no tempo por uma lente e ser reproduzíveis num ponto qualquer do futuro. Aqueles lugares talvez quase nunca fossem belos mas no instante em que eu estivera lá, neles, tinham encenado o melhor de si próprios.
Nesse sentido, a minha máquina era uma gala que celebrava a feliz coincidência entre um lugar onde eu estivera e a ocasião em que a luz transcendera esse lugar. Dentro da minha máquina, no palco dessa gala, desfilavam, um após outro, os testemunhos luminosos e ornamentados de um planeta aparentemente imaculado — um planeta que, tal como um tirano preocupado com a imagem internacional do seu feudo, relegava toda a violência, miséria e fealdade para uma zona de escuridão e censura. A minha postura não era conivente mas sim ofuscada: um viajante cujas fotografias nada mais revelavam, e nada mais recordavam, do que apenas a beleza iluminada da sua viagem.
O que me interessava fotografar era a minha própria felicidade, feita de luz e pureza sobre a paisagem. Cada fotografia minha era um lugar dentro de mim.
Gonçalo Cadilhe
(in “Um Lugar Dentro de Nós”, Clube do Autor, 2014)